PorMarcelino Galo eLuciana Mandelli
O Brasil carrega em sua história uma indissociável combinação de resistência e opressão. A luta pela democracia, pelo direito ao sonho, envolve o reconhecimento dos pilares conservadores que ainda estão presentes nas estratégias de desenvolvimento do país ora defendidas por setores arcaicos da política brasileira. Ainda se faz necessário, no presente, somar esforços para evidenciar as históricas violações de direitos humanos perpetradas pelo Estado autoritário a título de garantir a segurança nacional, e também de revisão da atual estrutura de representação política e de um dos modelos de desenvolvimento atualmente em disputa no país.
Quando em 13 de março de 1964, Jango anunciou, no corajoso discurso proferido na Cinelândia, as chamadas reformas de base, apontou para o Brasil uma perspectiva de construção popular do desenvolvimento, combinado com a consolidação da democracia e o combate às desigualdades. Absolutamente contrários à ideia de um governo popular, industriais, empresários das comunicações, o alto clero da igreja católica entre outros setores conservadores, garantiram a força necessária para que os militares implementassem o golpe político que exilou Jango, nos submeteu a mais de 20 anos de ditadura e a uma concepção de Estado cujo lastro conservador arrastamos até hoje. Alinharam-se ao bloco estadunidense na Guerra Fria para “garantir” o avanço tecnológico nacional e para combater o principal inimigo externo e interno do Estado brasileiro: o comunismo.
Neste ano, ao rememorarmos o cinquentenário do golpe que deu início aos anos de chumbo, vividos sob as sombras de uma ditadura civil-militar, é impossível não encontrar no presente muitos traços da estratégia de desenvolvimento nacional elaborada no período. O golpe de Estado deflagrado em 1964 estabeleceu no Brasil uma nova ordem política e econômica baseada nas ideias elaboradas pela Escola Superior de Guerra, que em 1949 fora criada para formular o que seria conhecido como “doutrina de segurança nacional”, que associa estratégias de segurança e desenvolvimento, buscando definir os pilares que seriam utilizados para o planejamento do país. O então capitão, e posteriormente general, Golbery do Couto e Silva, acumulou junto a seus pares, ainda na década de 50, a concepção de que o desenvolvimento do país se daria sobre bases privadas e oligopólios, e que, ao Estado, caberia formar uma tecnocracia a serviço da segurança e do progresso nacional.
Cinquenta anos depois, além dos incontáveis e ainda desconhecidos mortos e desaparecidos vítimas do Estado autoritário; podemos apontar outros aspectos da herança de Golbery e de seu pensamento formulado desde o IPES (Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais) e implementado ao longo de suas gestões como Ministro Chefe da Casa Civil, Ministro do Planejamento e Ministro da Justiça. Foi como Ministro da Justiça que ele arquitetou a transição para o Estado democrático ou, a Nova República, como gostava de chamar. Daí nasceram as distorcidas representações federativas, o colégio eleitoral e o arcabouço legislativo que nos rege até hoje, inclusive o financiamento privado das campanhas. São 26 anos de promulgação da constituição de 1988 e ainda falta muito para a plena democracia no Brasil.
O Partido dos Trabalhadores/as é fruto de resistência, da luta e dos sonhos de milhares de lutadores do povo, de uma geração que encontrou unidade política a partir de inúmeras experiências teóricas e organizações diversas, jovens, mulheres, sindicalistas, intelectuais, camponeses, para levar adiante a importante tarefa coletiva de promover a classe trabalhadora brasileira ao protagonismo de suas vidas e ao poder.
Em nossos 33 anos de história e existência, denunciamos as mazelas da ditadura. Não participamos do colégio eleitoral, denunciamos a transição consentida e o continuísmo da constituição de 1988. Nos constituímos como ferramenta da classe trabalhadora, como a organização partidária mais democrática, com fóruns regulares, com eleições diretas internas, com finanças coletivas, com o estabelecimento de cotas e de empoderamento para as mulheres, os negros e negras, para a juventude. Nunca tergiversamos em reconhecer o racismo como pilar estruturante da opressão e em compreender que é preciso reconhecer que nossa classe tem cor e tem sexo. Nunca desistimos do sonho e fomos vitoriosos. Assaltamos os céus, sob os marcos de uma nefasta estrutura, e vencemos eleitoralmente. Mas como há muito já afirmamos, ainda não é o suficiente.
Sob essa perspectiva histórica, os 12 anos de governo do Partido dos Trabalhadores elevaram expressivamente a qualidade de vida do povo brasileiro. Enfrentamos a pobreza e o analfabetismo, ampliamos o ensino superior, melhoramos o poder aquisitivo do salário-mínimo e tiramos uma grande parcela da linha pobreza. A palavra de ordem de nossos governos tem sido radicalizar a democracia; essa afirmativa passa por aprofundar os direitos sociais, distribuir renda, garantir integralmente os direitos humanos e a liberdade de expressão.
Não obstante, foi preciso muita coragem e convicção para estabelecer uma política de Estado que reconhecesse os deméritos e a herança da ditadura civil-militar, e que fosse capaz de revelar a verdadeira história do povo brasileiro. Esta decisão em nenhum momento pode ser confundida com revanchismo. Trata-se de nossa identidade, da busca pela verdade e pelo reconhecimento daqueles que deram o melhor de suas vidas para lutar pela democracia e pelo direito à liberdade para todo o povo brasileiro.
É fundamental que a justiça de transição seja compreendida como um propósito não de rever o passado, mas de apontar melhores perspectivas para o futuro. A Comissão Nacional da Verdade, e as inúmeras comissões de entidades, governos estaduais, municipais, assembleias, câmaras, entre outras, estabelecidas neste processo, devem ser compreendidas como um passo inicial na busca pela verdade. Não apenas para pensar a necessária punição dos culpados – e é preciso que se afirme que a revisão da lei da anistia é mais que urgente -, mas também para que essa ideologia de Estado totalitário seja suprimida do conjunto das perspectivas do povo brasileiro.
Trata-se também de compreender que as heranças deste período ainda podem ser percebidas com muita nitidez na política brasileira, e que é preciso combatê-las veementemente. A concentração de poder nos meios de comunicação, a injusta distribuição de terras, entre outros aspectos do autoritarismo no Brasil, precisam seguir sendo combatidos. É imprescindível que nossa bandeira central seja a reforma política, e que ela seja estabelecida por uma constituinte própria, pela mão do povo. A reforma política é o primeiro passo para as necessárias mudanças que o Brasil precisa para avançar. É preciso seguir sonhando e enfrentar os oligopólios, radicalizar a democracia e afirmar sempre que um outro Brasil é possível, mais humano, mais inclusivo, e, certamente, com melhores condições de vida para a classe trabalhadora, e sempre com a perspectiva socialista no horizonte.
Viva a memória do povo brasileiro;
Viva a resistência e o sonho;
Viva as lutadoras e os lutadores do povo;
Luciana Mandelli é Historiadora e Diretora da Fundação Perseu Abramo e Marcelino Galo é Deputado Estadual do PT da Bahia e presidente da Comissão da Verdade da Assembléia Legislativa da Bahia;